Segunda-feira, 16 de Abril de 2012

As prioridades da biblioteca de Constantinopla

Jorge Araújo

 

Corriam os meses de Abril e Maio do ano de 1453. Narra a história que enquanto Constantinopla era assediada pelos turcos otomanos e Constantino XI passava tractos de polé tentando resistir aos 80.000 ululantes que cercavam a cidade e cobiçavam o império Bizantino, os sacerdotes cristãos, reunidos em concílio, discutiam se os anjos tinham ou não sexo. O responsável pela dúvida terá sido Abraão pois quando três anjos (primeira aparição destes mensageiros de Deus) o visitaram após se ter feito circuncisar, a fim de se inteirarem da sua saúde e do seu bem-estar, o Patriarca ou não prestou atenção, o que é duvidoso, ou ter-se-á coibido de revelar o que vira aos vindouros, por questões de pudor. Ora bem, essa omissão, datada de 20 séculos antes de Jesus, atormentou a humanidade durante os 20 séculos de cristianismo.

 

O facto é que a polarização das mentes mais sábias de Constantinopla para esse assunto, que sendo de veras importante, não seria o mais pertinente, fez com que não fossem envidados esforços suficientes na procura de soluções criativas para a defesa da cidade. Enquanto prosseguia a acesa discussão entre os sacerdotes, Constantinopla, como se sabe, foi invadida e saqueada. Não sete vezes como se diz, mas apenas durante um dia pois o novo imperador queria fazer dela a capital do Império Otomano.

 

A história é menos exuberante na narração de outro facto ocorrido, em simultâneo. Alheados do problema de género, que tanto pesava sobre a humanidade, e despreocupados com o que se passava às portas da cidade, um grupo de doutores, reunidos no salão nobre da Biblioteca de Constantinopla, confrontava-se com uma vasta agenda de trabalhos na qual se destacavam dois pontos essenciais: a reorganização dos secretariados e a derrogação das normas que impediam os bibliotecários auxiliares de ascender a lugares de chefia. 

 

É duvidoso que os doutores não tenham chegado a soluções sábias e consensuais, após vários adiamentos e minuciosos esclarecimentos sobre as regras de afectação de espaços e funcionários. Mas não há registo dessas decisões pois estavam as actas a ser copiadas e a tinta ainda fresca, já os turcos lhes deitavam as mãos para acender fogueiras.

 

Nesse tempo, Constantinopla passou um mau bocado, é certo, mas a partir do seu casco ergueu-se Istambul onde a Europa e a Ásia se cortejam. O poder passou de mãos cristãs para mãos otomanas, o trono de Constantino foi ocupado por Mehmet II, as hortas continuaram a ser cultivadas, as crianças a nascer e a Biblioteca foi recuperada. O Mundo continuou a girar nos seus gonzos e, visto de longe, a queda de Constantinopla configura-se como uma etapa, seguramente dramática para quem a viveu, da transição da Idade Média para o Renascimento.

 

Se nos situarmos no próximo século, olhando para trás, podemos imaginar-nos a analisar, com a frieza do distanciamento, os factores socioeconómicos e outros que terão determinado a evolução, quiçá o declínio ou a extinção de Évora ou da Universidade. Esses factos terão a importância que lhes derem os doutorandos que os adoptarem como tema de estudo. Não mais, pois as crianças continuarão a nascer, as hortas a produzir alfaces e o Mundo a rodar nos seus gonzos.

 

Tal como hoje pouca relevância atribuímos ao que aconteceu naquela madrugada de 1759 quando a Universidade de Évora foi cercada pelas tropas reais e encerrada, também os nossos vindouros do séc. XXII não sentirão que as suas vidas terão sido afectadas pelo que acontecer aqui e agora.

 

Porém, aqui e agora estamos nós. Nós, inseridos numa malha social, com a legítima ambição de que a Região nos proporcione as melhores condições de vida, isto é, trabalho, cuidados de saúde, estímulos culturais e, de modo geral, acesso aos bens civilizacionais. Nesse sentido, a Universidade representa, simultaneamente, a fonte de rendimento mas também o principal factor de resiliência da Cidade e da Região face ao tropismo social que tende a esvaziar o interior do território.

 

Numa época em que as instituições se justificam não por terem simplesmente uma fachada e uma história mas pela mais-valia que representam para a comunidade que as sustenta, importa que desenvolvamos uma estratégia portadora de argumentos fortes para que seja pertinente, aos olhos dos gestores do Estado, a afectação de recursos públicos à Universidade de Évora e, consequentemente, a sua manutenção.

 

Naquela primavera de 1453, os habitantes de Constantinopla temiam por si e pelos seus bens; viveram semanas de extrema angústia esperando, em vão, que os mais sábios encontrassem uma solução.

 

Tal como naquele tempo, é importante que não nos deixemos enredar por questões que só talvez venham a ter alguma relevância se a instituição, no seu todo, quiser figurar no mapa do amanhã. Esse objectivo não será alcançado apenas pelo empenhamento de alguns voluntaristas elucubrando no segredo das suas celas; implicará a mobilização do pensamento e da cultura de uma maioria de docentes e de funcionários técnicos e administrativos, mas também dos estudantes, e a assunção de uma vontade colectiva.

 

Dito de modo sucinto: actuando democraticamente.

Publicado por lapenseenedoit às 19:54

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